Uma "história filosófica" da Psicologia

Em 2017 Saulo Araujo publicou Toward a philosophical history of psychology: An alternative path for the future, artigo que parece ter ocasionado certo burburinho nos meios anglófonos, bem como uma resposta de Araujo a eles. 

O que parece saltar aos olhos, disso tudo, é o conjunto de malentendidos e de interpretações enviesadas que esse tipo de debate ocasiona. 

A primeira coisa que me espanta é a "história da Psicologia", especialmente americana (e a brasileira a imita bastante), ter desenvolvido uma espécie de agenda institucional de história como se funcionasse independentemente das demais discussões em história e filosofia da ciência.

Um breve exemplo: em física é possível ser físico, e também se pode fazer história da física. As duas ocupações são bastante independentes a ponto de um físico pouco incomodar-se com sua própria história, ou ainda, pouco incomodar-se com qualquer outro tipo de historiador (vindo da História, da Filosofia, da Sociologia...) que se ocupe com seus assuntos, inclusive de forma por assim dizer "não-física", exterior ao métier do físico. 

Aliás, é incrível, por exemplo, ver um conjunto imenso de questões teóricas ser relegado a assuntos tais como "física teórica", que não obstante faz parte da física tout-court. Assuntos eminentemente filosóficos, como a "teoria das cordas", não chegam a ser chamados de "filosofia". 

Em resumo: vê-se entre os físicos inclusive certo despeito (inclusive no mal sentido) para com o que a história ou outras áreas podem fazer ou contribuir para com a física. E inversamente, vê-se trabalhos muito ricos de história da física feitos por filósofos e outros "não-físicos".

Em Psicologia parece diferente: quase todo historiador da Psicologia é psicólogo, formado entre psicólogos e estudando história da Psicologia em departamentos de psicologia. Mesmo que em Psicologia exista abertura para ver outras áreas e adequá-las em assuntos psicológicos, parece que há uma espécie de "agenda interna" que sempre subsume qualquer assunto em história da Psicologia para dentro dos muros institucionais dos psicólogos. Alguém se torna "historiador da Psicologia" estudando, via de regra, entre psicólogos.

Disso, parece-me notável o quanto o trabalho de Araujo tem ao mesmo tempo aberto portas e fornecido fatores que parecem pouco compreendidos por muitos psicólogos. 

É o caso de sua "história filosófica" da Psicologia. Ele argumenta no texto que, desde os anos 1960, houve uma grande institucionalização em história da psicologia, acompanhada de historiografias inspiradas em outras historiografias críticas e de "social turn". Dentre os exemplares ele cita estudos como o de Thomas Kuhn, que temporalizaram e, por assim dizer, "sociologizaram" os estudos em ciência. 

Diante disso, Araujo propõe com sua "história filosófica" algo que deveria parecer absolutamente trivial, mas incrivelmente não parece: estudar a história de uma ciência não retira de questão estudar o modo essencialmente polêmico com o qual uma ciência se relaciona com seu presente e com o seu passado, tornando-a polêmica em sua própria existência, e transmutando o presente em "atualidade", como diriam Bachelard e outros. É estudar como ela constrói sua arquitetura com base em seus conceitos e como esses conceitos "secretam" (para usar uma palavra de Canguilhem) uma história própria, que precisa ser compreendida na ligação desses conceitos com outros conceitos (filosóficos e científicos) e com uma imensa rede de outros fatores, por assim dizer, "não conceituais". 

Em suma: uma "história filosófica" não descarta o fato de que conceitos são formulados em agendas extra-científicas, mas não reduz a formação dos conceitos a aspectos positivistas e "internalistas"; e por outro lado, assume que cada ciência possui um conjunto de historicidades próprias das quais, se elas encontram suas condições de possibilidade também em outros fatores extra-científicos (por exemplo, sociológicos), isso não significa que toda ciência se reduza a esses condicionantes exteriores. Em suma: análise conceitual ligada a uma "história filosófica", sem recair nos ditos "internalismos" e "externalismos". 

O próprio Canguilhem, a esse respeito, dizia, em L'Objet de l'histoire des sciences, que 
A história das ciências não é uma ciência e seu objeto não é um objeto científico. Fazer, no sentido mais operativo do termo, uma hsitória das ciências, é uma das funções, e não a mais fácil, da epistemologia filosófica.
Parece-me surpreendente o quanto esse tipo de consideração, tão antiga, é tão pouco lida. Mas é precisamente por esse caminho que Araujo anda, caminho que não parece bem entendido por muita gente.

E caminho que também é trilhado por historiadores da filosofia, ou mesmo por quem quer tomar a história da psicologia como assunto de história da filosofia e das ciências.

Ele diz, por exemplo, que uma "história filosófica da psicologia" envolve um aspecto "crítico" (pois não celebra qualquer projeto psicológico), "policêntrico" (pois envolve os mais diversos projetos) e "internacional" (não diz respeito ao eixo anglo-europeu). Além disso, tal história visa a "coerência e racionalidade dos projetos psicológicos em seus próprios contextos históricos" (p. 10). 

Em suma: salta aos olhos que uma história da psicologia já não devesse ser aberta a outros domínios, especialmente filosóficos (digo isso em sentido bastante geral). É claro que o psicólogo retém questões filosóficas em Psicologia. Mas ele não pareceu ter percebido ainda o contrário: o quanto a Psicologia pode ser analisada sob pontos de vista que nada devem à Psicologia.

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- Wittgenstein

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