Cottingham: Alma (imortal), Animal, Anjo (Descartes)

alma, imortalidade da 

Em nenhum momento de sua vida, ao que parece, Descartes chegou realmente a pôr em questão a verdade da doutrina cristã da imortalidade da alma.
A sobrevivência post-mortem significava, para ele, a continuidade da existência do eu pensante essencial: "este 'eu', isto é, a alma que me faz ser o que sou, não deixaria de ser o que é ainda que o corpo não existisse" (AT VI 33: CSM I 127; quando se referia ao tema da consciência, Descartes não fazia qualquer distinção entre os termos "mente" e "alma": cf. Resumo das Meditações, AT IXA 10: CSM II 10). Na Carta-dedicatória à Faculdade de Teologia da Sorbonne, que abria a primeira edição das Meditações, Descartes observa que os fiéis devem aceitar que a "alma humana não morre com o corpo", e sugere que a demonstração dessa idéia pela "razão natural" serviria à causa da religião no combate ao ateísmo (AT VII2: CSM II3). Ao longo dos dez anos anteriores ele havia deixado clara a sua intenção de combater, por meio da afirmação da "existência de nossas almas quando separadas de nosso corpo", "os audaciosos e insolentes que ousassem lutar contra Deus"; isso seria alcançado pela demonstração da "independência de nossas almas em relação a nossos corpos, da qual decorre sua imortalidade" (carta a Mersenne de 25 de novembro de 1630, AT I 182: CSMK 29). 

Descartes admitiu mais tarde que não poderia, na verdade, fornecer prova forte o suficiente para eliminar a possibilidade, levantada por Mersenne, de que Deus pudesse ter conferido à alma "a exata quantidade de força e existência para que chegasse ao fim juntamente com o corpo" (AT VII 128: CSM II 91). Insistia, entretanto, na idéia de que não há "precedentes ou sinais convincentes" a indicar que a aniquilação de uma substância como a mente possa resultar de "causa tão trivial" como a morte corporal, que nada mais é do que a "divisão ou mudança de forma" nas partes do corpo (AT VII 153: CSM II 109). Esse ponto é exposto com detalhe no Resumo das Meditações: "o corpo humano, no que se distingue de outros corpos, resume-se, em sua constituição, a uma certa configuração de membros e outros elementos acidentais do gênero; já a mente humana não é, desta maneira, constituída por elementos acidentais, sendo, antes, uma substância pura. Pois mesmo que todos os elementos acidentais da mente se alterem, de modo a ter ela diferentes objetos de entendimento e diferentes desejos e sensações, isso não faz com que se torne uma mente diferente; o corpo humano, por sua vez, perde sua identidade com uma simples alteração na forma de algumas de suas partes. Segue-se daí que, enquanto o corpo humano pode facilmente perecer, a mente humana é imortal por sua própria natureza" (AT VII 14: CSM I 10; cf. As paixões da alma, arts. 5 e 6).

O argumento em favor da imortalidade da alma supõe ainda a premissa de que uma substância, uma vez criada por Deus, é "por sua própria natureza incorruptível e não pode deixar de existir a não ser que Deus a reduza a nada, negando-lhe seu concurso" (Resumo, loc. cit.) Mas se a substância, uma vez criada, continua ou não a existir, depende, em última instância, como nos lembra Descartes, da vontade eficaz de Deus, e não se pode saber ao certo o que ele planejou para a alma depois da morte: "Não me atrevo a tentar utilizar o poder da razão humana para resolver qualquer questão que dependa do livre-arbítrio de Deus" (AT VII153: CSM II109). Tal precaução - somada à relutância em adentrar o território da TEOLOGIA - pode explicar por que Descartes às vezes relutava em afirmar que poderia provar a imortalidade da alma. A alegação dessa prova no subtítulo da primeira edição das Meditações (1641) - "in qua ... animae immortalitas demonstratur" ("em que ... se demonstra a imortalidade da alma") - foi retirada na segunda edição, de 1642 (cf. carta a Mersenne, em 24 de dezembro de 1640: AT III 266: CSMK 163). Confronte-se também o tom de nítida resignação na carta à Elizabeth, em 3 de novembro de 1645: "Confesso que a razão natural, por si só, permite-nos fazer muitas conjecturas favoráveis e ter grandes esperanças, mas não nos dá qualquer certeza" (AT IV 333: CSMK 227).

animais

O termo "animal" relaciona-se etimologicamente ao termo latino anima ("alma"), havendo nele, portanto, vestígios da idéia escolástica de que as criaturas vivas distinguem-se das coisas não-vivas por serem "animadas" ou "dotadas de alma"; essa noção origina-se em parte da concepção bíblica de que as coisas vivas são animadas pelo "sopro da vida", e em parte da biologia aristotélica, que atribuía às coisas vivas uma hierarquia de faculdades, muitas vezes designadas como vários tipos de "alma" -"vegetativa", "motriz", "sensorial" e (no caso do homem) "racional". 

Descartes acompanha a tradição em um ponto apenas: atribui uma alma racional ao homem (AT XI 143: CSM1102; AT VI59: CSM1141). Entretanto, no caso de animais que não são humanos (e no das funções não-conscientes no homem), ele insiste que todo o comportamento relevante pode ser explicado em termos puramente mecânicos, sem que haja necessidade de postular qualquer princípio "animador". É, aliás, típico de Descartes evitar a palavra animal para descrever criaturas como cachorros, gatos e macacos, dando preferência ao rótulo menos abstrato bete ("besta"), ou, em latim, brutum ("bruto"). Descartes não encarava o fato de as bestas aparentarem ter um comportamento intencional complexo (buscar comida, fugir do perigo) como uma objeção decisiva contra sua visão radicalmente reducionista, segundo a qual tais seres não passam de autômatos mecânicos: se a habilidade dfi homem lhe permite construir, com o uso de poucas peças, máquinas automoventes, por que não considerarmos também o corpo biológico como uma simples "máquina que, tendo sido feita pela mão de Deus, goza de organização incomparavelmente melhor do que a de qualquer máquina que o homem possa inventar?" (Discurso, Parte V: AT VI56: CSM 1139). 

Quando conjugamos a explicação cartesiana dos animais como autômatos mecânicos à sua ontologia dualista (que atribui todas as coisas a um entre dois domínios incompatíveis, o domínio do pensante e o domínio do extenso), são nitidamente perturbadoras as implicações sobre nossa atitude com relação às bestas. Uma coisa pensante (res cogitans) é, para Descartes, um ser consciente de si, usuário de uma linguagem, em princípio capaz de refletir sobre sua própria natureza e existência; uma coisa extensa (res extensa), ao contrário, é caracterizada somente em função das interações entre suas partes, todas reduzidas, em última instância, a descrições em termos de tamanho, figura e movimento. Parece seguir-se daí que, uma vez que os animais não são coisas pensantes, são eles meras massas de matéria extensa - complexos, é verdade, na organização de suas partes, mas completamente destituídos de qualquer coisa a que se pudesse chamar consciência. A importância da linguagem, como "o único sinal seguro de pensamento interior" (AT V 278: CSMK 366), foi salientada por Descartes como crucial evidência da ausência completa de pensamento nos animais: "E notável que não haja homem, por mais estreito ou estúpido - e isso inclui até mesmo os loucos -, que não seja capaz de combinar diferentes palavras, formando com elas um enunciado que lhe permita dar a entender os seus pensamentos, sem que, contudo, haja qualquer outro animal ... que seja capaz de fazê-lo. Isso não se deve à falta dos órgãos necessários, pois vemos que as gralhas e os papagaios são capazes de pronunciar palavras assim como nós; ainda assim, não podem falar como nós, isto é, não podem mostrar que estão pensando aquilo que falam. Por outro lado, os surdos-mudos de nascença, privados dos órgãos da fala tanto quanto as bestas ou até mesmo mais do que elas, normalmente inventam seus próprios sinais para se fazerem entendidos... Isso mostra não somente que as bestas têm menos razão do que os homens, mas também que não têm mesmo razão alguma" (AT VI57-8: CSM I 140). 

Descartes têm argumentos interessantes para mostrar por que as emissões vocais dos animais não podem ser consideradas como verdadeira linguagem: os sons por eles emitidos (mesmo no caso de animais "falantes" como os papagaios) não passam de um comportamento despertado por um determinado estímulo. O verdadeiro uso da linguagem, por outro lado, envolve a habilidade de responder de forma adequada a uma gama indefinidamente grande de enunciados; e isso é algo que, segundo Descartes, não poderia ser reproduzido por um mero aparato de estímulo e resposta, seja o de uma máquina artificial ou o de uma máquina animal (ver LINGUAGEM). 

Negar que os animais pensam não eqüivale eo ipso a negar que sintam; e Descartes, vez por outra, expressava-se de modo a sugerir que os animais podem ter sensações, como a fome, ou paixões, como o medo, a esperança e a alegria (carta a Newcastle, de 23 de novembro de 1646, AT IV 574: CSMK 303). A explicação cartesiana para a natureza da SENSAÇÃO é, entretanto, extremamente problemática. Parece ter sido sua a concepção de que os fenômenos sensoriais surgem quando o corpo e a mente estão unidos; mas, uma vez que, segundo sua explicação, falta aos animais a mente, parece seguir-se daí que, no caso deles, não há, e nem pode haver, qualquer união psicofísica do gênero que sirva de base à sensação. E isso acaba por deixar os animais sem espaço no esquema cartesiano; ficam reduzidos à condição de meras massas de matéria extensa. Com efeito, no século subseqüente ao da morte de Descartes, seus seguidores celebrizaram-se pelo tratamento cruel que davam aos animais no curso da pesquisa experimental em fisiologia; sabemos que o próprio Descartes praticava a vivissecção com aparente serenidade (AT XI 241-2: CSM I 317). A posição de Descartes acerca do status dos animais permanece, entretanto, ambígua: se era inflexível ao negar-lhes o pensamento e a linguagem genuínos, contentava-se, contudo, em deixar nebulosa a identificação de que tipo de experiência sensorial - se é que alguma - lhes deveria ser atribuído. Escreve a More em 5 de fevereiro de 1649: "Observai que aqui me refiro ao pensamento e não à vida ou à sensação. Não nego que os animais tenham vida, uma vez que para mim ela é somente o calor do coração; nem mesmo nego que tenham sensação, na medida em que ela depende de um órgão corporal. Minha visão é, portanto, menos cruel para com os animais que indulgente para com os seres humanos, uma vez que os absolve da suspeita do crime quando matam ou comem animais" (AT V 278: CSMK 366).
anjo

 Na concepção tradicional, um anjo é um espírito, um ser incorpóreo que (nas palavras de Descartes), "embora possa aplicar-se a uma coisa extensa, não é, em si, extenso" (AT V 270: CSMK 361). Uma vez que é exatamente assim que Descartes concebe a mente humana, poderíamos ver aí uma analogia bastante próxima entre um anjo temporariamente investido de um corpo e um ser humano; em ambos os casos parece estar envolvida a idéia de um espírito puro e incorpóreo utilizando-se de um mecanismo corporal estranho à sua verdadeira natureza.

Essa interpretação do ponto de vista de Descartes levou seu discípulo, Regius, a apresentar a posição cartesiana como afirmativa da idéia de que o homem é um ens per accidens, isto é, de que o ser humano não é, por si só, uma verdadeira entidade, sendo, antes, composto de duas substâncias distintas, alma e corpo, que podem eventualmente conjugar-se (por exemplo, durante a vida terrena), mas que não constituem uma unidade essencial. Em sua resposta a Regius, Descartes tenta afastar-se dessa interpretação: afirma ser melhor dizer que o homem é um ens per se (uma entidade por si só), e que "a mente humana está unida ao corpo de forma real e substancial" (AT III493: CSMK 206).

Mas isso faz com que Descartes tenha de explicar em que um ser humano, no que diz respeito à relação corpo-mente, se diferencia de um anjo que faz uso de um corpo. Sua resposta é que "um anjo que estivesse em um corpo humano, não teria sensações (sentire), como as que temos, mas iria simplesmente perceber (percipere, isto é, estar intelectualmente consciente) os movimentos causados por objetos externos, nisso distinguindo-se de um verdadeiro homem" (ibid., cf. AT VII 81: CSM II 56). É, portanto, a dimensão sensorial que, para Descartes, distingue a vida mental humana da vida mental de um anjo, ou espírito puro, e uma investigação da natureza da sensação acaba por mostrar-se a chave para entender a "união substancial" entre mente e corpo, que constitui um verdadeiro ser humano.

Cottingham, John. Dicionario Descartes (trad. Helena Martins). RJ, Zahar

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